segunda-feira, 30 de março de 2009
domingo, 1 de março de 2009
Monarquia do leque
Manifesto Teatral Nº 05
Ontem, voltei de uma palestra que fui convidado a ministrar em uma Universidade de um estado próximo.
Adentrei calma e seguramente o auditório, falar de teatro me é natural e fácil, auditório que estava abarrotado de jovens universitários aspirantes a artistas, ou a aspirador de pó. Meu manto de veludo preto vagarosamente expandia-se pelo chão. Na mão, um cetro com uma estrela de bronze na ponta. Todo o auditório riu ao me ver.
Cessado o histérico cômico dos jovens, falei:
“O que esperavam?
Ver-me de calça jeans, camiseta e tênis?
Então não seria eu um artista, seria um espelho!
Vocês são assim, corrompidos pelos padrões da vó de nossa sociedade, não eu. Olhem para o colega ao lado e para o desconhecido da outra fileira, todos iguais, literalmente, iguais.
Acreditei, dois meses antes de estar aqui, que viria falar a artistas, jovens artistas, de mudanças, rebeldia, política, educação, filosofia e quebra de paradigmas, ou seja, de Arte.
Mas onde estão os jovens?
E os artistas?
Porque vocês que estão aí sentados me olhando não os são! Vocês não são artistas, sequer são jovens!
Todo artista, mesmo os fisiologicamente velhos, tem os atributos psicológicos dos jovens: Audácia, predisposição ao novo, ao inusitado! Liberdade física, liberdade verbal, liberdade mental! Falta de vergonha. Excesso de inquietação. Jovens não se sentam acomodados em poltronas estofadas e riem distraídos. Jovens correm, pulam, movem-se distorcidos, pois o espírito não lhes cabe no corpo. Deram-lhe um número menor! Todo jovem sobe o abismo ético-moral dessa sociedade almejando jogar-se de lá. E joga-se crendo, sem receios, rancores ou cálculos (coisas de velho) criar asas durante a queda. E as cria, não nas costas como os patos, marrecos ou as cotovias, mas na cabeça, como os filósofos, pois o jovem ainda crê no poder do INCRÍVEL!
O que não é o caso de vocês, velhos disfarçados. Por favor, tenham um pouco de dignidade e tirem essas máscaras mal feitas que os escondem.
Vocês são tão caducos,
Tão taxativos,
Tão óbvios.
Vamos, voltem para a geriatria de suas grandes idéias. É lá onde tudo já foi pensado. Vão, porque aqui é onde se faz arte, aqui é a maternidade. Daqui nascem novos argumentos, novas questões, proposições e muitos novos problemas que substituirão vocês.
Cabeças velhas pensam na sala ao lado do necrotério. Não vim aqui para falar do passado. E sei que o que vocês mais querem é que eu faça desta palestra uma sessão espírita para invocar Meyerhold, Artuad, Craig, Jaques Copeau, o velho Brecht, James Joyce, Spolin, Ionesco, Peter Weiss, Lorca, Beckett e quem sabe com muita sorte e boa vontade dos bons espíritos, o grande Shakespeare!
Não o farei.
Vim falar do futuro.
O tempo dessas cabeças teatrais já se foi, assim como a de vocês.
Vim falar do que está por vir. Da gestação, quase secular, que a Arte está vivendo! Não com vocês, pois vocês morrerão antes do magnífico parto!
Por favor senhora, onde estão os jovens que vão me ouvir? (perguntei a organizadora da palestra)
Devem eles estar no pátio lá fora.
Não há lugar aqui dentro. Vocês ocuparam tudo, pegaram o lugar dos outros. Por favor velharia, saia e deixem que o novo ocupe os acentos.
Inatitude!
Bem típico dos velhos.
Saio eu então. Com licença, mas vou atrás dos novos pensamentos, pois os velhos, já pensei, e vocês também não servem mais para o mundo como ele está.”
Desci do palco.
Da mesma forma que entrei, calma e seguramente, saio do auditório que permaneceu imerso em completo silêncio, de sons e raciocínios.
Calei-lhes a cabeça.
Hoje os pensamentos falam muito alto, muito mais alto que as línguas.
Poderia ter palestrado horas a fio sobre os mortos que todos tanto amam e no final seria aplaudido, considerado mais um mestre do teatro! No entanto, fiz o que me propus a ir fazer: falar a verdade.
Pelo menos o que subjugo verdade.
Mas se queriam outro tipo de show que convidassem outro palhaço. O que mais tem nos circos acadêmicos são palestrantes pós-graduados nas teorias dos falecidos mestres do teatro.
A sociedade tem que mudar.
As artes dessa sociedade têm que mudar.
É ingenuidade separar o meio artístico dos demais fragmentos enferrujados que constroem a sociedade. Tudo está corrompido.
Os artistas precisam ser educados.
E a educação nem sempre consegue ser mansa.
Um bebê ao aprender a andar sofre, chora, amedronta-se e esperneia com os primeiros passos bípedes. Doem as perninhas. Também não poderia ser diferente, toda a sua curta vida resume-se a estar deitado, sendo levado no colo quando sai do lugar.
Assim é a alma dos artistas, jovens e velhos, desse meu tempo boçal. São bebezinhos deitados. Toda a reflexão no máximo lhes é uma delicada cantiga de ninar. E se fazem algo dentro de suas vidas, reparem leitores, é sempre embalados no colo de outros.
Pobres crianças.
São enganados pelo tempo.
Têm elas o corpo novo e a pela lisa. Mas a cabeça já está atrofiada de tantas condutas, aneurismas, teorias e experiências, como a de um velho, cujo sistema político já infectou, estragou, descartou.
Quando o Castelo das Expectativas caiu, sobrou apenas o silêncio.
Manso, quieto.
Sei que decepcionei os jovens universitários e seus professores que lêem meus escritos. Sinto que eles queriam que eu os encorajasse, que eu com minha fala hipnótica, reafirma-se todas as teses que indicam que eles estão no caminho certo.
Mas não acredito que estejam.
Creio que todos estão errados!
Pois todas as escolas de artes não estão estudando o mistério do que ainda não existe. Os homens ainda estão se vangloriando do que os homens de ontem, de séculos ontem, fizeram.
Sempre falo sobre esse saudosismo social que nos paralisa. Não digo para esquecermos nossa história, mesmo porque agora sou a razão pela qual meus ancestrais existiam.
Essa é a diferença. Talvez não consigamos a mesma proeza dos ancestrais, olhar à frente. Esse é o erro, formar artistas que andam de costas para verdades. Educando a olhar para trás, mas o incentivam a andar para a frente. Então, o cobra-cega vê apenas a glória de dias estupendos que Shakespeare viveu, mas não vê os buracos no próprio caminho.
Cai.
Cai.
Cai.
Não por estar tentando. Mas cai simplesmente por não estar vendo. Andam para uma direção com a cabeça voltada para outra.
Tenho medo de pensar que é propositadamente isso que o sistema social quer, artistas curupira, (cabeça para um lado, pés para o outro) para tardar o infarto social. Mas penso... Já fazem as coisas de caso pensado. Berços, universidades, teatros, tudo para manter as coisas como estão. Como se como elas estão, estivesse bem. Ninguém tem coragem de realizar a eutanásia na sociedade, mesmo depois de décadas de coma. A própria conduta social inventou uma moral que inibe e exclui a eutanásia dos hábitos das pessoas de respeito. Inteligente esse sociedade.
E esses jovens não viram a cabeça para frente por medo. Tem receio, medo de aprenderem. São bebês que não querem andar. Não querem eles perder o reinado de seus bercinhos. Sua coroa, sua chupeta de ouro!
Pegue uma enciclopédia qualquer e dê uma olhada sobre os hábitos dos pássaros. Notará que a natureza animal é mais eficaz que a natureza humana. Na sociedade alada das aves não se inventam processos de aprendizagem, tão pouco institucionalizam escolas onde se ensinam o pequeno passarinho técnicas para voar, planar e diversas modalidades de vôo. Simples e amorosamente a mãe pássaro dá um ponta-pé no filhote, que cai do ninho e, voa!
O que não é o nosso caso humano.
Prorrogamos o máximo possível o dia da prática. Preferimos o conforto seguro das teorias, onde nunca precisaremos nos confrontar com nossas incapacidades. Afinal, no almofadado das páginas de um livro aceita-se qualquer idéia.
E jamais se admitirá que um pardal tenha mais inteligência que um universitário.
Entretanto, ninguém quer saltar do ninho.
Porque todos bem sabem que o excesso de teorias é tão pesado em suas cabeças, que ao tentarem vôo solo, vão se esborrachar com a cara no chão.
E eu ouço a alegria dos pássaros em vôo.
Eles cantam sobre o prazer da liberdade, pois estão livres! E eu vejo os artistas e acadêmicos agarrados em seus ninhos mofados do saber intelectual, também cantam eles sobre o prazer da liberdade. Mas os vejo presos! Uns, falam-me da liberdade teorizadamente idealizada, baseada no resultado das experiências de seus mortos.
O que não muda e nunca mudará é o ninho onde se fixam. E hora e outra, vêm uma ave e lhes dá de comer. Crêem eles que estão se alimentando do saber mais verdadeiro e nutritivo que suas almas podem conseguir.
Mas daqui onde estou vejo outra coisa. Vejo que a ave retira a comida de uma latrina... Bem, parece-me uma daquelas latrinas medievais.
É uma fossa, um enorme e fétido buraco no chão lamacento... Hei, tem alguém tentando sair de lá! Quem será ali, na beira da fossa? Creio conhecer aquele rosto... Parece que é... Não, não. Não pode ser. Sim, parece Stanislavski! Ó, meu Deus, é ele! Devo ajudá-lo?! Não, é melhor deixá-lo onde está. Mesmo já estando embolorado, ele ainda serve de comida aos artistas do ninho.
Cruel destino o dos mestres.
São como Prometeu, vem uma ave e lhes come as víceras!
Isso é o que dá tentar mudar a sociedade. Por isso não me assusto com tantos artistas ninados, quem quer terminar numa fossa de esterco histórico (só para não falar merda), servindo de comida aos jovens do futuro?
Não, obrigado. Renego este fim.
Por isso disse aos universitários na palestra:
“-... Vocês são assim, corrompidos pelos padrões da vó de nossa sociedade...”.
Dessa forma eles já sentem que eu tenho um gosto ruim, e mais tarde, quando eu morrer e não mais aqui estiver para afugentá-los para longe das minhas idéias, não vão eles querer me comer.
Creio que consegui.
Penso isso por causa do silêncio que ficou no auditório enquanto eu saia.
Quietude não faz parte de nossas relações. Vai que alguém pensa em alguma coisa. Para evitar tal constrangimento, de se pensar, todos falam ao mesmo tempo e sem parar.
O silêncio é uma nobre forma de expressão do ser, pouco usada, justamente por ser nobre em um mundo onde tudo é vulgar.
Quando era eu um dos que assistiam às palestras em meus anos de universidade, escrevi um teatro (“Madrugada” – 2005) onde uma das personagens proclamava contra as platéias tagarelas:
“- O Silêncio dará a graça, somente quando decompor-se as línguas.”
Na primeira tentativa de montagem (coisa que não consegui) o ator que atuaria dentro desta incógnita existencial, escreveu-me:
“O silêncio do homem é sempre perturbador, pois nossas pobres almas se contorcem de tanta aflição quando se dão conta que o silêncio mostra toda a falta de conteúdo positivo, e de quanto nos sentimos necessitados de algo que não conhecemos, por isso procuramos sempre algo que nos desvie da essência verdadeira do ser.”
E isso foi quando éramos jovens artistas descamisados.
Subíamos nos palcos com marretas e martelos para desmontá-los. Mesmo depois de tanto tempo, suas palavras somente agora geraram sentido.
Naquela época sentávamos nas salas de aula ou nas platéias com revolta e insatisfação. Eu, com um nariz de palhaço, ele, com um enorme leque branco. Tanto o nariz quanto o leque eram formas não verbais de dizer: Não aceito. Estou aqui, mas não aceito.
Os colegas já sabiam, quando o enorme leque ascendia e se abria, produzindo um som semelhante a um trovão no deserto, durante uma explicação de um professor, era a alma daquele ator se expressando, levantando uma crítica, uma questão vital para o aprimoramento do nosso teatro, para a lapidação dos sonhos, uma pergunta que nunca ninguém quis responder:
Pra que estudamos isso?
E os condecorados professores não respondiam esta incógnita acadêmica, não porque não soubessem a resposta. Pelo contra, nada falavam exatamente por saberem que seria preciso dizer:
Estudamos tudo isso por nada. Apenas para matar o tempo vago de nossas vidas, apenas para nos iludirmos e crermos que artisticamente vale a pena trancafiarmos-nos em uma universidade, pois este é a trilha mais fácil para nunca termos de fazer arte, e mesmo assim, sermos considerados artistas e os mais aptos para sobrepujarmos a própria arte!
Desta forma, este ator sempre foi censurado pelos mestres por exigir uma explicação mais psicológica, um ponto de vista mais filosófico ou no mínimo, espiritual, sobre tantos e tantos séculos de história. O leque era então, sua indagação proibida de ser feita!
O leque simbolizava a resistência.
Nós resistimos.
Eu resisto.
E ainda hoje, e principalmente hoje que envelheço, não aceito! Não vou corromper como meus antigos professores de universidade, pela velhice ou pelo fracasso de suas profissões.
Será preciso sempre uma ditadura para fazer as cabeças se expressarem?
Se minha opinião vale: Acredito que não. Mas no dia que palestrei, alegraria meu coração, ver um enorme leque branco erguendo-se do meio do auditório atônito.
Porém, nenhum leque foi aberto.
Pelo contrário, as idéias é que foram ainda mais fechadas.
Então o Teatro da relatividade novamente manifesta-se em mim. Ao reler as palavras do velho ator companheiro de resistência, incorporo-as e compreendo-as: “O silêncio do homem é sempre perturbador...”.
Por isso nem eu, nem ele nem nosso teatro se calaram.
Erguíamos a voz, as palavras, os textos e os leques, bem alto, contra a tirania do passado sobre o presente. Passado velho que luta pra viver eternamente, obstruindo o futuro e o fazendo mirrar!
E muitos foram os colegas que riram e se viraram contra nós. E muitos foram os professores que, sem nenhum argumento ético-sócio-artístico-intelecto-moral, nos definiram como imbecis.
Naqueles dias, houve voltagem, eletricidade na revolta que houve.
Havendo remorso, rancor, ranger, rastilhos, ratos, resignações, rasteiras, rameiras, retardos e retificações. Enquanto, mesmo com a boca entupida de terra, pedra, carvão, lodo, girinos, gosma e defecações, nós resistimos a engolir. Até quando não permitimos ser o que nos cerca e mais nos enoja. Até o momento que existir um grão de pó em nós, haverá uma reflexão!
E agora vejo que aquelas pessoas, alunos, professores e platéias, eram velhos demais para compreenderem o que falávamos.
Todas aquelas cabeças já haviam se esquecido que toda inconveniência é o prelúdio de uma tempestade, e toda tempestade sopra a poeira velha que asfixia o ar, varre a terra das folhas mortas, permitindo assim que novos homens germinem em um novo amanhecer.
E por isso não éramos bem vindos no teatro, na universidade, em nossas famílias, na sociedade e em suas festas. Éramos inconvenientes, e o éramos porque falávamos de um outro lugar, e que chegar até lá era fácil, prazeroso e admirável. De um lugar luzente que não era aquela velha ideologia que todos ainda discutiam e construíam suas convenções na tentativa de compreendê-la.
Conversa velha.
Toda idéia morre quando morre a mente que a pensou.
Uma idéia só serve para instigar o nascimento de outras novas idéias. E como um efeito em cadeia e totalmente incontrolável pelas trêmulas mãos capitalistas, a cada dia viveria-se dentro de uma nova proposta, inusitada, irreverente, inata, insólita, inconveniente às propostas antigas.
Um teatro assistido, um livro lido, uma música ouvida, uma pintura observada, não são o ponto de chegada, e sim o ponto de largada. Dali deve-se nascer nas mentes das platéias novas propostas. Toda arte é apenas a madrugada de um amanhecer.
O leque poderia naqueles anos ter se calado. Poderia ter deixado todos descerem a fossa de Stanislavski sem serem avisados. Poderia ter permitido que a voz dos mortos prevaleça assombrando as salas de aula sem resistência.
Mas o leque não se calou.
E foram os próprios ditadores que o criam. Foi o ato mesquinhamente fraco de impedir um artista de falar, que possibilitou a aquele ator as ferramentas para construir uma arma contra os costumes impostos.
E para este ator, abrir ou não o leque, não teria feito diferença, pois sua mente jamais se sujaria com tinta nanquim.
Mas para todos aqueles bebês, sonâmbulos, professores, atores e defuntos que viram pessoalmente a luz branca do leque libertador levantar-se contra eles próprios, resplandecendo em meio às trevas da ignorância de uma universidade, jamais acreditaram que tudo, teatro e vida, sejam apenas uma fossa onde são jogados milênios de experiência humana.
A imagem aterrorizante do leque os lembrará sempre de que os pássaros voam alegremente em silêncio.
Tornamo-nos, inclusive os que mais repudiavam e mais temiam o leque, súditos de uma monarquia! Ouso grafar essa palavra numa sociedade de leitores que fingem uns aos outros viverem em uma democracia, a fim de ressaltar seu sentido de hereditariedade.
O leque criou um reinado.
Nada poderia desmistificá-lo!
Destituí-lo!
Reinado este que nos foi passado, cuja honra é nos mantermos resistentes ante a falsa democracia dos engabelamentos.
Existe arte.
Verdadeiramente, existe esperança.
Existe teatro.
Apenas estamos longe delas. Porém, é apenas uma questão de distâncias agora.
Por isso não mais podemos esperar que outros (famílias, escolas, filhos ou governos) nos levem até lá. Saltemos impertinentemente deste colo e caminhemos, agora!
João Luís Mendes Dias
Ontem, voltei de uma palestra que fui convidado a ministrar em uma Universidade de um estado próximo.
Adentrei calma e seguramente o auditório, falar de teatro me é natural e fácil, auditório que estava abarrotado de jovens universitários aspirantes a artistas, ou a aspirador de pó. Meu manto de veludo preto vagarosamente expandia-se pelo chão. Na mão, um cetro com uma estrela de bronze na ponta. Todo o auditório riu ao me ver.
Cessado o histérico cômico dos jovens, falei:
“O que esperavam?
Ver-me de calça jeans, camiseta e tênis?
Então não seria eu um artista, seria um espelho!
Vocês são assim, corrompidos pelos padrões da vó de nossa sociedade, não eu. Olhem para o colega ao lado e para o desconhecido da outra fileira, todos iguais, literalmente, iguais.
Acreditei, dois meses antes de estar aqui, que viria falar a artistas, jovens artistas, de mudanças, rebeldia, política, educação, filosofia e quebra de paradigmas, ou seja, de Arte.
Mas onde estão os jovens?
E os artistas?
Porque vocês que estão aí sentados me olhando não os são! Vocês não são artistas, sequer são jovens!
Todo artista, mesmo os fisiologicamente velhos, tem os atributos psicológicos dos jovens: Audácia, predisposição ao novo, ao inusitado! Liberdade física, liberdade verbal, liberdade mental! Falta de vergonha. Excesso de inquietação. Jovens não se sentam acomodados em poltronas estofadas e riem distraídos. Jovens correm, pulam, movem-se distorcidos, pois o espírito não lhes cabe no corpo. Deram-lhe um número menor! Todo jovem sobe o abismo ético-moral dessa sociedade almejando jogar-se de lá. E joga-se crendo, sem receios, rancores ou cálculos (coisas de velho) criar asas durante a queda. E as cria, não nas costas como os patos, marrecos ou as cotovias, mas na cabeça, como os filósofos, pois o jovem ainda crê no poder do INCRÍVEL!
O que não é o caso de vocês, velhos disfarçados. Por favor, tenham um pouco de dignidade e tirem essas máscaras mal feitas que os escondem.
Vocês são tão caducos,
Tão taxativos,
Tão óbvios.
Vamos, voltem para a geriatria de suas grandes idéias. É lá onde tudo já foi pensado. Vão, porque aqui é onde se faz arte, aqui é a maternidade. Daqui nascem novos argumentos, novas questões, proposições e muitos novos problemas que substituirão vocês.
Cabeças velhas pensam na sala ao lado do necrotério. Não vim aqui para falar do passado. E sei que o que vocês mais querem é que eu faça desta palestra uma sessão espírita para invocar Meyerhold, Artuad, Craig, Jaques Copeau, o velho Brecht, James Joyce, Spolin, Ionesco, Peter Weiss, Lorca, Beckett e quem sabe com muita sorte e boa vontade dos bons espíritos, o grande Shakespeare!
Não o farei.
Vim falar do futuro.
O tempo dessas cabeças teatrais já se foi, assim como a de vocês.
Vim falar do que está por vir. Da gestação, quase secular, que a Arte está vivendo! Não com vocês, pois vocês morrerão antes do magnífico parto!
Por favor senhora, onde estão os jovens que vão me ouvir? (perguntei a organizadora da palestra)
Devem eles estar no pátio lá fora.
Não há lugar aqui dentro. Vocês ocuparam tudo, pegaram o lugar dos outros. Por favor velharia, saia e deixem que o novo ocupe os acentos.
Inatitude!
Bem típico dos velhos.
Saio eu então. Com licença, mas vou atrás dos novos pensamentos, pois os velhos, já pensei, e vocês também não servem mais para o mundo como ele está.”
Desci do palco.
Da mesma forma que entrei, calma e seguramente, saio do auditório que permaneceu imerso em completo silêncio, de sons e raciocínios.
Calei-lhes a cabeça.
Hoje os pensamentos falam muito alto, muito mais alto que as línguas.
Poderia ter palestrado horas a fio sobre os mortos que todos tanto amam e no final seria aplaudido, considerado mais um mestre do teatro! No entanto, fiz o que me propus a ir fazer: falar a verdade.
Pelo menos o que subjugo verdade.
Mas se queriam outro tipo de show que convidassem outro palhaço. O que mais tem nos circos acadêmicos são palestrantes pós-graduados nas teorias dos falecidos mestres do teatro.
A sociedade tem que mudar.
As artes dessa sociedade têm que mudar.
É ingenuidade separar o meio artístico dos demais fragmentos enferrujados que constroem a sociedade. Tudo está corrompido.
Os artistas precisam ser educados.
E a educação nem sempre consegue ser mansa.
Um bebê ao aprender a andar sofre, chora, amedronta-se e esperneia com os primeiros passos bípedes. Doem as perninhas. Também não poderia ser diferente, toda a sua curta vida resume-se a estar deitado, sendo levado no colo quando sai do lugar.
Assim é a alma dos artistas, jovens e velhos, desse meu tempo boçal. São bebezinhos deitados. Toda a reflexão no máximo lhes é uma delicada cantiga de ninar. E se fazem algo dentro de suas vidas, reparem leitores, é sempre embalados no colo de outros.
Pobres crianças.
São enganados pelo tempo.
Têm elas o corpo novo e a pela lisa. Mas a cabeça já está atrofiada de tantas condutas, aneurismas, teorias e experiências, como a de um velho, cujo sistema político já infectou, estragou, descartou.
Quando o Castelo das Expectativas caiu, sobrou apenas o silêncio.
Manso, quieto.
Sei que decepcionei os jovens universitários e seus professores que lêem meus escritos. Sinto que eles queriam que eu os encorajasse, que eu com minha fala hipnótica, reafirma-se todas as teses que indicam que eles estão no caminho certo.
Mas não acredito que estejam.
Creio que todos estão errados!
Pois todas as escolas de artes não estão estudando o mistério do que ainda não existe. Os homens ainda estão se vangloriando do que os homens de ontem, de séculos ontem, fizeram.
Sempre falo sobre esse saudosismo social que nos paralisa. Não digo para esquecermos nossa história, mesmo porque agora sou a razão pela qual meus ancestrais existiam.
Essa é a diferença. Talvez não consigamos a mesma proeza dos ancestrais, olhar à frente. Esse é o erro, formar artistas que andam de costas para verdades. Educando a olhar para trás, mas o incentivam a andar para a frente. Então, o cobra-cega vê apenas a glória de dias estupendos que Shakespeare viveu, mas não vê os buracos no próprio caminho.
Cai.
Cai.
Cai.
Não por estar tentando. Mas cai simplesmente por não estar vendo. Andam para uma direção com a cabeça voltada para outra.
Tenho medo de pensar que é propositadamente isso que o sistema social quer, artistas curupira, (cabeça para um lado, pés para o outro) para tardar o infarto social. Mas penso... Já fazem as coisas de caso pensado. Berços, universidades, teatros, tudo para manter as coisas como estão. Como se como elas estão, estivesse bem. Ninguém tem coragem de realizar a eutanásia na sociedade, mesmo depois de décadas de coma. A própria conduta social inventou uma moral que inibe e exclui a eutanásia dos hábitos das pessoas de respeito. Inteligente esse sociedade.
E esses jovens não viram a cabeça para frente por medo. Tem receio, medo de aprenderem. São bebês que não querem andar. Não querem eles perder o reinado de seus bercinhos. Sua coroa, sua chupeta de ouro!
Pegue uma enciclopédia qualquer e dê uma olhada sobre os hábitos dos pássaros. Notará que a natureza animal é mais eficaz que a natureza humana. Na sociedade alada das aves não se inventam processos de aprendizagem, tão pouco institucionalizam escolas onde se ensinam o pequeno passarinho técnicas para voar, planar e diversas modalidades de vôo. Simples e amorosamente a mãe pássaro dá um ponta-pé no filhote, que cai do ninho e, voa!
O que não é o nosso caso humano.
Prorrogamos o máximo possível o dia da prática. Preferimos o conforto seguro das teorias, onde nunca precisaremos nos confrontar com nossas incapacidades. Afinal, no almofadado das páginas de um livro aceita-se qualquer idéia.
E jamais se admitirá que um pardal tenha mais inteligência que um universitário.
Entretanto, ninguém quer saltar do ninho.
Porque todos bem sabem que o excesso de teorias é tão pesado em suas cabeças, que ao tentarem vôo solo, vão se esborrachar com a cara no chão.
E eu ouço a alegria dos pássaros em vôo.
Eles cantam sobre o prazer da liberdade, pois estão livres! E eu vejo os artistas e acadêmicos agarrados em seus ninhos mofados do saber intelectual, também cantam eles sobre o prazer da liberdade. Mas os vejo presos! Uns, falam-me da liberdade teorizadamente idealizada, baseada no resultado das experiências de seus mortos.
O que não muda e nunca mudará é o ninho onde se fixam. E hora e outra, vêm uma ave e lhes dá de comer. Crêem eles que estão se alimentando do saber mais verdadeiro e nutritivo que suas almas podem conseguir.
Mas daqui onde estou vejo outra coisa. Vejo que a ave retira a comida de uma latrina... Bem, parece-me uma daquelas latrinas medievais.
É uma fossa, um enorme e fétido buraco no chão lamacento... Hei, tem alguém tentando sair de lá! Quem será ali, na beira da fossa? Creio conhecer aquele rosto... Parece que é... Não, não. Não pode ser. Sim, parece Stanislavski! Ó, meu Deus, é ele! Devo ajudá-lo?! Não, é melhor deixá-lo onde está. Mesmo já estando embolorado, ele ainda serve de comida aos artistas do ninho.
Cruel destino o dos mestres.
São como Prometeu, vem uma ave e lhes come as víceras!
Isso é o que dá tentar mudar a sociedade. Por isso não me assusto com tantos artistas ninados, quem quer terminar numa fossa de esterco histórico (só para não falar merda), servindo de comida aos jovens do futuro?
Não, obrigado. Renego este fim.
Por isso disse aos universitários na palestra:
“-... Vocês são assim, corrompidos pelos padrões da vó de nossa sociedade...”.
Dessa forma eles já sentem que eu tenho um gosto ruim, e mais tarde, quando eu morrer e não mais aqui estiver para afugentá-los para longe das minhas idéias, não vão eles querer me comer.
Creio que consegui.
Penso isso por causa do silêncio que ficou no auditório enquanto eu saia.
Quietude não faz parte de nossas relações. Vai que alguém pensa em alguma coisa. Para evitar tal constrangimento, de se pensar, todos falam ao mesmo tempo e sem parar.
O silêncio é uma nobre forma de expressão do ser, pouco usada, justamente por ser nobre em um mundo onde tudo é vulgar.
Quando era eu um dos que assistiam às palestras em meus anos de universidade, escrevi um teatro (“Madrugada” – 2005) onde uma das personagens proclamava contra as platéias tagarelas:
“- O Silêncio dará a graça, somente quando decompor-se as línguas.”
Na primeira tentativa de montagem (coisa que não consegui) o ator que atuaria dentro desta incógnita existencial, escreveu-me:
“O silêncio do homem é sempre perturbador, pois nossas pobres almas se contorcem de tanta aflição quando se dão conta que o silêncio mostra toda a falta de conteúdo positivo, e de quanto nos sentimos necessitados de algo que não conhecemos, por isso procuramos sempre algo que nos desvie da essência verdadeira do ser.”
E isso foi quando éramos jovens artistas descamisados.
Subíamos nos palcos com marretas e martelos para desmontá-los. Mesmo depois de tanto tempo, suas palavras somente agora geraram sentido.
Naquela época sentávamos nas salas de aula ou nas platéias com revolta e insatisfação. Eu, com um nariz de palhaço, ele, com um enorme leque branco. Tanto o nariz quanto o leque eram formas não verbais de dizer: Não aceito. Estou aqui, mas não aceito.
Os colegas já sabiam, quando o enorme leque ascendia e se abria, produzindo um som semelhante a um trovão no deserto, durante uma explicação de um professor, era a alma daquele ator se expressando, levantando uma crítica, uma questão vital para o aprimoramento do nosso teatro, para a lapidação dos sonhos, uma pergunta que nunca ninguém quis responder:
Pra que estudamos isso?
E os condecorados professores não respondiam esta incógnita acadêmica, não porque não soubessem a resposta. Pelo contra, nada falavam exatamente por saberem que seria preciso dizer:
Estudamos tudo isso por nada. Apenas para matar o tempo vago de nossas vidas, apenas para nos iludirmos e crermos que artisticamente vale a pena trancafiarmos-nos em uma universidade, pois este é a trilha mais fácil para nunca termos de fazer arte, e mesmo assim, sermos considerados artistas e os mais aptos para sobrepujarmos a própria arte!
Desta forma, este ator sempre foi censurado pelos mestres por exigir uma explicação mais psicológica, um ponto de vista mais filosófico ou no mínimo, espiritual, sobre tantos e tantos séculos de história. O leque era então, sua indagação proibida de ser feita!
O leque simbolizava a resistência.
Nós resistimos.
Eu resisto.
E ainda hoje, e principalmente hoje que envelheço, não aceito! Não vou corromper como meus antigos professores de universidade, pela velhice ou pelo fracasso de suas profissões.
Será preciso sempre uma ditadura para fazer as cabeças se expressarem?
Se minha opinião vale: Acredito que não. Mas no dia que palestrei, alegraria meu coração, ver um enorme leque branco erguendo-se do meio do auditório atônito.
Porém, nenhum leque foi aberto.
Pelo contrário, as idéias é que foram ainda mais fechadas.
Então o Teatro da relatividade novamente manifesta-se em mim. Ao reler as palavras do velho ator companheiro de resistência, incorporo-as e compreendo-as: “O silêncio do homem é sempre perturbador...”.
Por isso nem eu, nem ele nem nosso teatro se calaram.
Erguíamos a voz, as palavras, os textos e os leques, bem alto, contra a tirania do passado sobre o presente. Passado velho que luta pra viver eternamente, obstruindo o futuro e o fazendo mirrar!
E muitos foram os colegas que riram e se viraram contra nós. E muitos foram os professores que, sem nenhum argumento ético-sócio-artístico-intelecto-moral, nos definiram como imbecis.
Naqueles dias, houve voltagem, eletricidade na revolta que houve.
Havendo remorso, rancor, ranger, rastilhos, ratos, resignações, rasteiras, rameiras, retardos e retificações. Enquanto, mesmo com a boca entupida de terra, pedra, carvão, lodo, girinos, gosma e defecações, nós resistimos a engolir. Até quando não permitimos ser o que nos cerca e mais nos enoja. Até o momento que existir um grão de pó em nós, haverá uma reflexão!
E agora vejo que aquelas pessoas, alunos, professores e platéias, eram velhos demais para compreenderem o que falávamos.
Todas aquelas cabeças já haviam se esquecido que toda inconveniência é o prelúdio de uma tempestade, e toda tempestade sopra a poeira velha que asfixia o ar, varre a terra das folhas mortas, permitindo assim que novos homens germinem em um novo amanhecer.
E por isso não éramos bem vindos no teatro, na universidade, em nossas famílias, na sociedade e em suas festas. Éramos inconvenientes, e o éramos porque falávamos de um outro lugar, e que chegar até lá era fácil, prazeroso e admirável. De um lugar luzente que não era aquela velha ideologia que todos ainda discutiam e construíam suas convenções na tentativa de compreendê-la.
Conversa velha.
Toda idéia morre quando morre a mente que a pensou.
Uma idéia só serve para instigar o nascimento de outras novas idéias. E como um efeito em cadeia e totalmente incontrolável pelas trêmulas mãos capitalistas, a cada dia viveria-se dentro de uma nova proposta, inusitada, irreverente, inata, insólita, inconveniente às propostas antigas.
Um teatro assistido, um livro lido, uma música ouvida, uma pintura observada, não são o ponto de chegada, e sim o ponto de largada. Dali deve-se nascer nas mentes das platéias novas propostas. Toda arte é apenas a madrugada de um amanhecer.
O leque poderia naqueles anos ter se calado. Poderia ter deixado todos descerem a fossa de Stanislavski sem serem avisados. Poderia ter permitido que a voz dos mortos prevaleça assombrando as salas de aula sem resistência.
Mas o leque não se calou.
E foram os próprios ditadores que o criam. Foi o ato mesquinhamente fraco de impedir um artista de falar, que possibilitou a aquele ator as ferramentas para construir uma arma contra os costumes impostos.
E para este ator, abrir ou não o leque, não teria feito diferença, pois sua mente jamais se sujaria com tinta nanquim.
Mas para todos aqueles bebês, sonâmbulos, professores, atores e defuntos que viram pessoalmente a luz branca do leque libertador levantar-se contra eles próprios, resplandecendo em meio às trevas da ignorância de uma universidade, jamais acreditaram que tudo, teatro e vida, sejam apenas uma fossa onde são jogados milênios de experiência humana.
A imagem aterrorizante do leque os lembrará sempre de que os pássaros voam alegremente em silêncio.
Tornamo-nos, inclusive os que mais repudiavam e mais temiam o leque, súditos de uma monarquia! Ouso grafar essa palavra numa sociedade de leitores que fingem uns aos outros viverem em uma democracia, a fim de ressaltar seu sentido de hereditariedade.
O leque criou um reinado.
Nada poderia desmistificá-lo!
Destituí-lo!
Reinado este que nos foi passado, cuja honra é nos mantermos resistentes ante a falsa democracia dos engabelamentos.
Existe arte.
Verdadeiramente, existe esperança.
Existe teatro.
Apenas estamos longe delas. Porém, é apenas uma questão de distâncias agora.
Por isso não mais podemos esperar que outros (famílias, escolas, filhos ou governos) nos levem até lá. Saltemos impertinentemente deste colo e caminhemos, agora!
João Luís Mendes Dias
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